UM VERDADEIRO PRODÍGIO

Thiago Pereira da Silva Flores 38 anos, morador da Colônia Santa Isabel em Betim-MG é doutor e mestre em Ciências Sociais pela PUC Minas. É advogado desde 2015 e produtor cultural e audiovisual desde 2017, além de cozinheiro. Em 2021 lançou o livro “Isolamento Compulsório, os equívocos que se repetem”. Thiago é diretor nacional do Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas Pela Hanseníase (MORHAN) e Conselheiro Nacional de Direitos Humanos-CNDH, é colaborador do Serviço Franciscano de Justiça, Paz e Integridade da Criação (JPIC) e Participa da Articulação Brasileira pela Economia de Francisco e Clara (ABEFC).

Como foi sua jornada de superação e luta contra a doença hanseníase na Colônia Santa Isabel?


A Colônia Santa Isabel foi inaugurada em 1931 para promover a política pública de isolamento compulsório para os portadores de “lepra”, nomenclatura substituída por hanseníase no Brasil desde a década de 1980. Meus pais Nelson e Zenaide, foram diagnosticados com a doença ele no município de Águas Vermelhas Nordeste de Minas, ela na cidade de Juiz de Fora Zona da Mata Mineira e foram isolados em Santa Isabel ainda criança na década de 1950. Se conheceram na Colônia, casaram e não tiveram filhos biológicos, na época as crianças que nasciam dentro da Colônia eram retirados compulsoriamente formando um grupo conhecido com “Filhos Separados”. No ano de 1985, com dois dias de vida, eu fui adotado pelos meus pais e passei a fazer parte dessa história.

 

 

Pode nos contar sobre suas experiências e encontros memoráveis com o Papa durante sua luta pela comunidade?

Logo no início do pontificado do Papa Francisco, o Papa por algumas vezes utilizou o termo lepra para dizer sobre coisas negativas. “ A corrupção no banco do vaticano é uma lepra da igreja” “ a pedofilia é uma lepra da igreja”. A Europa e a maioria dos países ainda utilizam a palavra “lepra” para denominar a doença. Sem saber, o Papa Francisco estava provocando estigma e discriminação para as pessoas que já tiveram a doença, assim para os novas pessoas diagnosticadas com a doença no mundo, cerca 200 mil diagnósticos no anualmente. O primeiro encontro em junho de 2015 se deu nesse contexto, de pedir ao Papa que não se utilizasse mais do termo “lepra” como adjetivo de coisas ruins e negativas, o que foi aceito de prontidão. O segundo encontro aconteceu em setembro de 2022 na cidade de Assis, na ocasião do evento “Economia de Francisco”, nesse evento, eu apresentei um trabalho acadêmico destacando que para se pensar novas formas de relações econômicas, é inadmissível que cerca de 500 mil a 1 milhão de pessoas morram anualmente por doenças classificadas como negligenciadas pela Organização Mundial de Saúde-OMS. Todas essas doenças possuem tratamento e cura, entre elas está a hanseníase, que é de baixa mortalidade, mas de alta capacidade de alterar as condições psicossociais das pessoas diagnosticadas.

 

Como sua experiência pessoal influenciou sua dedicação à causa das vítimas da hanseníase?


Como eu nasci nesse contexto, ao invés de negar as minhas origens, logo eu fui participar do Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase – MORHAN eu procurei desenvolver todos os meus trabalhos no curso de direito, no mestrado e doutorado em Ciências Sociais, com a temática voltada ao isolamento compulsório e os danos ainda causados por essa separação de famílias. 

           

Além de suas atividades sociais, você se destacou na culinária. Quais são seus pratos ou receitas favoritas que gostaria de compartilhar conosco?


 Cozinhar é um ato coletivo e de sociabilidade familiar, nos momentos mais alegres e importantes de nossas vidas geralmente, estamos reunidos em torno de uma mesa comendo e bebendo com parentes e amigos. Minha vó exercia esse papel de reunir a família e celebrar a vida, o que me influenciou diretamente por esse amor a culinária, a primeira receita que aprendi a fazer sozinho foi com ela, o tradicional pão de queijo que fazíamos todo sábado a tarde. Depois eu fui aperfeiçoando com minha mãe e minha tia, fiz um curso de técnico em agropecuária e me especializei em processamento de carnes, leite  e vegetais. Além do pão de queijo, gosto muito de fazer carne na lata, torresmo, frango atropelado, carne de panela e diversas receitas da nossa culinária mineira, eu pratico essa culinária afetiva, onde as texturas, aromas e sabores, nos remetem a importantes memórias de nossas vidas. 

 

Como a culinária se tornou uma parte importante de sua vida e como você a utiliza para promover a cultura e a identidade da Colônia Santa Isabel?


Um dos meus projetos de médio prazo é uma publicação que vai se chamar “Comida de Colônia”, o objetivo vai ser apresentar uma receita e a história da cozinheira ou cozinheiro, contando os desafios e superações do período do isolamento compulsório da hanseníase. A longo prazo, quero abrir um restaurante na Colônia Santa Isabel e promover esse turismo cultural e gastronômico na comunidade. A curta prazo, em parceria com o grande Chef de Cozinha Alberto “Berzé”, estamos pensando em desenvolver um projeto ligado a essa culinária afetiva em Bichinhos, distrito de Prados e próximo a cidade de Tiradentes.

 

Quais são os projetos ou iniciativas que você liderou ou participou para melhorar a vida das pessoas em sua comunidade?

 

Foram diversas lutas e conquistas junto ao Morhan, desde coisas mais simples até grandiosas, destaque para a Lei 11.520/07 que garanti a todas as pessoas atingidas pela hanseníase no Brasil, uma indenização mensal e vitalícia como reconhecimento de crime de Estado pelos danos sofridos. Atualmente estamos na luta para que os “Filhos Separados pela Hanseníase”, possam ter direito a essa mesma indenização. Estamos lutando para que os patrimônios materiais e imateriais ligados a história da hanseníase no Brasil, possam ser tombados pelo IPHAN, assim como lutamos pelo diagnóstico precoce da doença e a saúde integral das pessoas diagnosticadas com hanseníase, nosso maior desafio, está do lado de fora das ex-colônias, a doença ainda é muita ativa no Brasil, cerca de 30 mil casos anualmente.

 

Pode nos falar sobre os desafios enfrentados pela Colônia Santa Isabel e como você vê o futuro dela?


A história da Colônia Santa Isabel é forjada na luta e resistência dos pacientes da doença, filhos e familiares, tudo foi conquistado pela luta, a queda das correntes, o direito de sair das Colônia, o direito ao transporte coletivo, o direito a água e luz de qualidade, o direito ao reconhecimento trabalhista e diversos outros direitos. O futuro da Colônia hoje é uma incógnita, a Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais – FHEMIG, não valoriza a história das colônias de Minas Gerais e nem presta um serviço de qualidade para os ex-pacientes. Interessante destacar que  a Fundação tem recursos, tem estrutura administrativa, tem pessoal mas falta gestão e vontade política para com Santa Isabel e as outras Colônias de Minas.  A FHEMIG parece que conta os dias para que os últimos remanescentes do isolamento compulsório deixem de existir, para que ela possa encerrar suas atividades em Santa Isabel, com isso, cada dia mais vem sucateando os serviços ofertados na região e tenta uma terceirização para Santa Isabel e as outras Colônias de Minas, cumprindo esse que parece ser seu objetivo de ir se ausentando desses territórios.

 

Quais são as lições mais importantes que você aprendeu ao longo de sua vida e que gostaria de compartilhar com as gerações futuras?


Que mais importante de onde você possa chegar, é nunca se esquecer de onde você venho, não adianta você ter todos os diplomas possíveis, ter um bom emprego, conhecer diversos países e Estados, eu particularmente conheço 22 Estados brasileiros e 13 países, e não ter consciência política de coletividade, as conquistas individuais são importantes, mas as conquistas coletivas mudam a comunidade, o bairro, a cidade, a sociedade e o mundo.

 

Além de sua história notável, você tem algum plano ou sonho para o futuro que deseja alcançar?


O grande sonho do momento que estou ajudando a realizar não é meu, é do meu pai, em janeiro de 2024 vamos lançar o livro dele “A Rosa e o Machado, memórias de um brasileiro excluído”, são memórias que contam a história da hanseníase na nossa família e a história da Colônia Santa Isabel, iniciando na década de 1950 até o ano de 2010, narrado com o olhar de quem viveu na pele o isolamento compulsório da hanseníase. A obra possui 786 páginas e é ilustrado com 200 fotos. Depois eu quero lançar meu segundo livro e produzir um longa metragem tendo como roteiro principal o livro do meu pai e utilizando minhas dois livros para complementar esse universo do isolamento compulsório da hanseníase.

 

Como os moradores da Colônia Santa Isabel podem se inspirar em sua trajetória para buscar uma vida melhor e mais plena?


Eu não poderia deixar de destacar, que essa trajetória tem muito haver com o meu processo de formação acadêmica, que se deu pelo acesso a políticas públicas voltadas para a educação. No curso de direito eu fui agraciado com uma bolsa de 50% do PROUNI e financiei os outros 50% pelo FIES, no mestrado e doutorado, eu fui bolsista da CAPES, minha vida acadêmica foi toda desenvolvida na PUC Minas, o FIES que já tem alguns anos que terminei de pagar, era a prestação que eu fazia questão de nunca atrasar, para que outra pessoa também vinda de origem humilde e da periferia pudesse assim como eu, ter a oportunidade de ocupar espaços que naturalmente não estariam em meu caminho, quando se nasce pobre, a educação é a maior chance de ascensão social, por é importante ao chegar em lugar de destaque, não se esquecer das suas origens e de alguma forma tentar colaborar para que outras pessoas também possam chegar.